terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Capoeira e Identidade

CAPOEIRA E IDENTIDADE
Muniz Sodré
Na atmosfera emocional das nossas salas de aula ou nas entrelinhas dos nossos manuais escolares, ainda ressoam os ecos dos séculos de crença do Ocidente na mortificação da carne e na celebração da “alma eterna”, oposta à concretude temporal do corpo. A fórmula mens sana in corpore sano (mente sã em corpo são), divisa idealizada do esporte ao Anglo-saxão, apenas sacramenta uma dualidade (espírito/carne/mente/corpo) em que um dos termos polares exerce poder controlador sobre o outro: o espírito controla a saúde do corpo.  
  É difícil conciliar essa ética desencarnada com a realidade das formações sociais ou comunidades históricas que fazem do corpo um órgão de expressão, dinamizado pelas formas da ritualização do movimento. Para tais grupos, inexiste a dicotomia mente/corpo, as realidades físicas não se afastam das espirituais.   Na verdade, existe mesmo a possibilidade de falarmos de um “corpo espiritual”, ou seja, de um corpo que não se defina pela mera anatomia, mas pela capacidade de refletir a sua experiência particular no mundo. Ao nos indignarmos sobre as possibilidades conceituais e pedagógicas do “esporte com identidade cultural”, vislumbramos a existência desse” corpo espiritual” no Jogo da capoeira, largamente praticado no Brasil.    Figura do patrimônio afro-brasileiro, a capoeira é mesmo tempo de canto, música, dança e luta.
Diferentemente do esporte europeu – onde a mente separada incita o corpo à sua máxima produtividade mecânica – a capoeira define-se como um Jogo. Este termo não designa aqui simples distração, mas um conjunto ritualístico de procedimentos, voltado tanto para o combate contra o adversário como para a expressão do júbilo corporal, dentro do quadro histórico e mítico da etnia dita negro – brasileira, cujos valores são também ditos “de tradição”. Grupo e Tradição     Para o “homem da tradição”, ser não significa simplesmente viver mas pertencer a uma totalidade, que é o grupo. Cada ser singular perfaz o seu processo de individualização em função dessa pluralidade instituída (o grupo), onde se assentam as bases de sustentação da vida psíquica individual.   
Na realidade, mesmo modernamente, a constituição psíquica do individuo depende da força de continuidade do grupo, de modo que cada um configura-se com um “lugar”, um “território”, ao mesmo tempo singular e social, sempre investindo do desejo ancestral (familiar, clânico) de continuidade da espécie. A Ética (a cultura, em sua originalidade) é precisamente a linguagem desse desejo.    Pelo pertencimento o grupo faz-se imanente ao individuo, enquanto este reencontra-se no grupo. O individuo pertence ao grupo tanto quanto a si próprio, pois ser individuo ou ser grupo equivale de fato a uma função no trabalho de estabelecimento de limites ou de determinação de identidade em face da vasta diferenciação do fenômeno humano. Para o homem da tradição, da Arkhé, está mais do que claro que o subjetivo é também trans-subjetivo.   
 Há, porém, uma diferença entre grupos de pertencimento “primários” ou “naturais” e grupos de pertencimento “secundários” ou “instituídos”. A família-mas também a clã, a etnia – é essencialmente grupo primário. Este grupo, de onde procede a individualização primeira, fornece a matriz da identidade cultural dos indivíduos.    Os grupos de pertencimento secundários são formações instituídas, onde se reúnem indivíduos já constituídos. É necessário, portanto, que a individualização continua na forma da socialização e da interiorização de normas e valores. O processo civilizatório ou cultural opera no quadro dessa secundariedade.    O processo civilizatório do negro no Brasil conheceu uma dialética própria na questão do entrecruzamento das diversas “nações” (etnias) que aqui chegaram como grupos primários.
E havia entre negros as diferenças étnicas, a diversidade das “nações” na diáspora.    As diferenças entreviam-se especialmente na esfera do trabalho “ de ganho” (ferraria, sapataria, carpintaria), em que os negros, forros ou não, se organizavam etnicamente por meio de pontos de trabalho, conhecidos na cidade de Salvador (Bahia) como “cantos” e espalhados por todo território urbano.    A aparente competição comercial dos “cantos”, a diversidade étnica, poderiam suscitar uma forte diferenciação político – cultural. entretanto, a realidade histórica veiculada principalmente por fontes orais dá conta de que na formação sócio – cultural negra (baiana) inexistiu a tão acentuada divisão que ensaístas e historiadores estabeleceram entre as diversas etnias – bantos, gegês, nagôs etc.   
 É certo que a historiografia evidencia rivalidades de diversas ordens (de africanos entre si, de negros e pardos, de crioulos e africanos). É também certo que até persistem diferentes tradições étnico-culturais, como da linha congo-angola, que tem seu paradigma litúrgico no terreiro do Bate-Folha, na Bahia. Mas sabe-se em contrapartida da solidariedade nascida entre os cativos durante a travessia do Atlântico, assim como os “antigos” dos cultos afro-brasileiros falam de um intercâmbio profundo entre as comunidades, capaz de passar por cima de velhas divisões étnicas. Por exemplo negros de várias etnias (nagôs, haussás e outras) tomaram parte na famosa revolta dos malês em 1835.   
Fatos dessa natureza são importantes para a compreensão do ethos cultural afro-brasileiro, porque demonstram que os orixás, os voduns ou os inquices não são entidades apenas religiosas, mas principalmente suportes simbólicos – isto é, condutores de regras de trocas sociais, assim como de “textos” éticos – para a continuidade de um grupo determinado. Zelar por um símbolo, ou seja cultuá-lo nos termos da tradição, implica aderir a um sistema de pensamento, uma “filosofia”, capaz de responder as questões essenciais sobre o sentido da existência do grupo.    No Brasil, esse “grupo zelador de orixá” não é já-dado ou natural, mas constituído, instituído, secundário, embora a família possa ter eventualmente uma certa prevalência hierárquica . São numerosos e todo mundo os casos de grupos étnicos que diante da ameaça de desintegração, combinam-se institucionalmente com outros, gerando formações sincréticas.    
 Tais combinações seguiam uma direção intercultural (nagôs com outras “nações” africanas) e transcultural (negros com brancos). Através de atos interagidos, propiciados pela plasticidade institucional, o indivíduo negro entra em relação com elementos da realidade histórica, mas também pode exercer uma ação sobre elementos da realidade e sobre a estrutura real dos grupos sociais.    A dialética dessa movimentação passa por um interrecionamento complexo entre processos de grupo primário e secundário. No caso nagô, os primários deslocaram-se para o secundário na forma de ritmos, cerimônias, estruturas, que passaram a regular a organização do espaço e do tempo.    Podemos dizer,assim, que no Brasil a etnia teve mais características de grupo secundário do que de grupo de pertencimento primário.
Aqui , o grupo matricial de pertencimento foi o “grupo de terreiro” ou grupo de culto que foi um grupo construído, instituído em função de uma reterritorialização político - cultural do negro em diáspora escrava e de uma dinâmica de comunicação entre os diversos sistemas cultos. Tal é o sentido transcultural e intercultural da movimentação negra no território brasileiro. Tal é a abertura histórica  que institui o “grupo de terreiro” no Brasil como “nação popular”.    Na troca entre as diferenças, pode-se enxergar uma lição prático-teórica sobre a dinâmica real de movimentação das populações econômica  e politicamente subalternas. A posição litúrgico – existencial do elemento negro (espécie de símbolo ontológico das classes subalternas) sempre foi a de trocar com as diferenças, assegurando a identidade étnico-cultural e expandindo-se.
Nessa operação, não vige o princípio da contradição e do terceiro excluído: os contrários atraem-se, banto também é nagô, caboclo pode ser zelado como orixá ou vodum.    Tal posição não é uma acidentalidade história. Acha-se inscrita no ser da diferença nagô, como se pode depreender de muitos textos a exemplo do itan   Atorun d’orun Exu (Cf. Santos, Juana Elbein. Os nagôs e a Morte, vozes), na passagem em que Exu Yangi, o primeiro nascido (que ameaça a existência por sua vocaridade), diante da reação de Orumilá faz o pacto em que delega à humanidade a possibilidade de restituição do que havia comido: “Orunmilá deveria chamá-lo/ se quisesse recuperar a todos e / cada um dos animais, das aves / que ele tinha comido sobre a terra / ele / Exu os assistiria para / reavê-los das mãos da humanidade”. 
   O que se vai restituir é o Axé, a força de realização que torna possível e dinamiza a existência. E a restituição requer a complementação um dos fundamentos do complexo teogônico nagô – entre o que poderíamos chamar de “parceiros” da existência: mortos (ancestrais) e vivos, egum e orixá, orixá masculino e orixá feminino, lado esquerdo, gegê e nagô, congolês e angolense, gegê, congo – angolense, enfim a complementação histórica das nações em suas vicissitudes existenciais.    Das matrizes dessa irmandade sub-nacional, pode-se extrair a lição de um “humanismo prático”, que se consubstancia na abertura para as diferenças no interior de um mesmo território político. A dialética particular das instituições afro-brasileiras reencontra-se na prática com o que, na teoria, um certo pensamento ocidental da diferença chamaria de “projeto aberto”.
Ou seja, os homens advêm à sua essencialidade na medida em que situam no mundo com projeto aberto e instituído pela existência entendida como algo que transcende a presença pura e simples dos entes ou das coisa do mundo. Essa existência implica responsabilidade (obrigação) e parceria (ser junto a outro). Corpo culturalizado Isso tudo transparece no jogo de capoeira, De que maneira? Pode-se responder inicialmente, citando um comentário de T. Deshimaru sobre as artes marciais japonesas: “O comportamento no jogo reflui sobre nossa vida cotidiana. Cada gesto é importante. Como comer, como arrumar, como vestir-se, ir ao banheiro, como portar-se em frente aos outros, com a família, com a mulher, como trabalhar, com ser completamente em cada gesto”.  
  “Artes marciais” aí não se entendem como meras técnicas de guerra corporal, mas como um estilo de existência, ligado à história do grupo que as práticas. são de fato um prolongamento de todo um modo de pensar ( o Zen-Budismo), onde é vital a presença de si em cada gesto executado, onde a extraordinária técnica corporal vincula-se a uma forma particular de consciência que privilegia a intuição. A harmonia entre o corpo e o espírito comanda continuamente a ação do sujeito.    Essas “artes marciais”, assim como a capoeira , são jogos com identidade cultural, ou seja, são atividades corporais que remetem a uma história e seus desdobramentos na atividade concreta dos sujeitos. O corpo que “joga” não pode ser reduzido a uma representação anatomo-fisiológica , porque é atravessado em sua existência cotidiana pelos fluxos de um corpo imaginário oriundo do drama de sua identidade cultural.
As modalidades de ação, a diversidade dos gestos, são afetadas por um tipo de sociabilidade, cuja compreensão é indispensável a estratégias pedagógicas mais amplas.    A capoeira é uma forma de resgate de experiências expressivas não verbais, em conexão com as experiências fundamentais de coordenação motora. É ademais expressão, no sentido da transmissão deliberada de valores da vicissitude constitutiva da identidade afro-brasileira.    A possibilidade que ela dá ao sujeito de fundir-se como um todo (uma história, uma territorialidade, um mito) faz dela uma “arte” (sentido ampliado de “jogo”)- uma arte brasileira do corpo. É, portanto, formativa, enquanto a veiculação de uma tradição ética centrada no corpo integrado e afinado com as especialidades do território nacional. A virtualidade pedagógica e estética de jogo da capoeira é imensa.